Faz hoje 695 anos que Dom Dinis mandou elaborar uma ata curiosa, assinada por testemunhas de alta guisa e autenticada por um escrivão: nela ficaram descritas as características de um solho descomunal pescado no Tejo, perto de Santarém!
Tal documento intriga os historiadores que se perguntam em que circunstâncias terá ocorrido a sua elaboração. Sendo comummente aceite que Dom Dinis era dado aos prazeres da vida, criei a seguinte cena no meu romance sobre o Rei Lavrador:
A cantiga acabou entre aplausos e gargalhadas estrondosas e os convivas reclamavam a sua repetição, quando um criado anunciou que Dom Guedelha, o rabi-mor do reino, pretendia falar com el-rei, pois tinha um colosso de peixe para lhe mostrar! Curioso, Dinis mandou-o entrar e Dom Guedelha surgiu acompanhado por quatro serviçais, que se viam aflitos para carregar um solho descomunal acabado de retirar do Tejo.
- Assim que lhe pus os olhos em cima - afirmou o judeu, - disse para a minha gente: ala a mostrá-lo a el-rei, que nunca na sua vida viu tal!
- E não é que é verdade? - concordava Dinis, dando uma palmada na coxa. - Estais de parabéns, Dom Guedelha! Pegai numa taça e bebei connosco!
Depois de se inclinar numa vénia, o rabi-mor pegou agradecido numa taça, que logo um pajem encheu de vinho. Os fidalgos começaram a comentar as dimensões do colosso: na boca, caberia um raposo inteiro e, desde aí, até à cauda, contavam-se, no espinhaço, trinta escamas do tamanho de conchas. Constatou-se ainda que o peixe media dezassete palmos e meio de comprimento e sete de grossura. El-rei quis saber quanto pesava e sugeriu que se deslocassem à adega, onde se encontrava a balança.
- Vamos todos - dizia ele, - pois é ver para crer. Um colosso destes merece testemunhas de peso!
Os fidalgos, rindo da piada que acharam oportuna, condescenderam, levando as suas taças na mão. O alferes-mor João Afonso, que mal se aguentava em pé, ia ainda a pegar numa jarra cheia, quando o cunhado de la Cerda lhe disse:
- Homem, deixai aqui a jarra, que ainda derramais o vinho pelas escadas abaixo!
Estas palavras arrancaram mais gargalhadas, que aumentaram de tom às palavras do falcoeiro Afonso Fernandes de Baião:
- Onde já se viu? O homem tem medo de morrer à sede numa adega cheia de pipas!
Em passos trôpegos e no meio de grande algazarra, lá chegaram ao destino. Depois de se pesar o peixe, pasmaram: dezassete arrobas e meia, pelos pesos de Santarém!
Todos juravam nunca haver visto cousa assim e Dinis ordenou que o fenómeno ficasse registado. Mandou procurar um escrivão que estivesse sóbrio. E logo ali se elaborou uma ata, onde se registaram as medidas e o peso do solho, confirmadas pela assinatura de todos os presentes.